
“Temos tanto para fazer e temos de o fazer juntos. Sejamos resilientes.”
Reflexão de Ana Castro Neves, Médica Especialista em Imunoalergologia
Está prestes a terminar um ano que trouxe tantos desafios para todos nós; quer ao nível pessoal, quer profissional e, acima de tudo, como sociedade. Todos, sem excepção, nos deparámos com uma situação “nova”.
“Vivemos como se fôssemos imortais, imunes e, pior, como se fôssemos indispensáveis.”
Comumente dizemos que “o tempo voa”, porque, na verdade, não o conseguimos controlar. Tudo passa. Passam os dias, as estações, as épocas. Desde que nascemos, morremos um pouco todos os dias. A vida é um caminho que termina e alguns nem chegam a envelhecer. Vivemos como se fôssemos imortais, imunes e, pior, como se fôssemos indispensáveis. Evitamos pensar na nossa própria morte e na finitude da vida. Esta atitude é trágica, porque não permite a nossa evolução e não nos conduz à sabedoria. Ninguém é eterno. Apenas o AMOR é eterno. Ficamos eternizados no coração daqueles que nos amam.
Todos dependemos do tempo e nenhum de nós sabe quanto tempo lhe resta. A maioria (sobre)vive na rotina inexorável do trabalho, tendo cada vez menos tempo para si e para a família. Na verdade, vivemos a acelerar, de manhã à noite, como se fôssemos máquinas. Mas, não somos máquinas. Aliás, a revolução industrial trouxe consigo a ideia de melhoria de qualidade de vida e aumento do poder de compra. Contrariamente ao expectável, talvez em termos de desenvolvimento de consciência humana os ganhos não tenham sido tantos assim. O capitalismo exagerado que vivemos atualmente, escraviza as pessoas. O mundo de consumismo transforma as pessoas, vivem cada vez mais centradas em si próprias. Vivem alienadas do mundo que as rodeia ficando dependentes dos bens materiais e afastadas do que realmente é essencial. Diariamente, através dos diversos programas informativos audiovisuais, somos confrontados com imagens de miséria por todo o mundo, que nos habitua lentamente ao sofrimento dos outros, como se fosse algo normal. Temos que lutar contra a globalização da indiferença. A verdade tornou-se uma espécie em vias de extinção, quando as notícias são governadas pelo cinismo, por factos alternativos. As mentiras e a corrupção são a ordem política do dia.
“Temos que lutar contra a globalização da indiferença.”
Vivemos num mundo em constante agitação, a uma velocidade frenética.
Quando vivemos a um ritmo tão acelerado, perdemos os nossos gestos mais humanos. Perdemos a capacidade de escutar os outros, a capacidade de ver os outros com um olhar humano, terno, misericordioso. Olhar as pessoas nos olhos. Ser verdadeiro.
Ternura não é fraqueza, é força. Partilhar não empobrece, pelo contrário. Como diz o cantor Miguel Gameiro “É preciso escutar quem nos fala por dentro, porque é agora o momento. Parar por dentro e por fora. É preciso dar o melhor que nós temos, todo o amor é de menos. É preciso levantar do chão.” Mas também é preciso escutar o que nos diz a nossa casa comum. Ouvir a Natureza, o Planeta.
Fomos obrigados a desacelerar. Subitamente passámos da azáfama do quotidiano para ficarmos em confinamento nas nossas casas. Fomos invadidos com muita informação e desinformação sobre o novo vírus. Fomos invadidos por imagens de um planeta em recuperação, que precisava de repouso. De “respirar”. Fomos convidados a reflectir.
Negligenciámos o nosso lugar no planeta. Julgamos que algo que se passa do outro lado do Mundo não nos afecta directamente. Não poderíamos estar mais enganados. Além das catástrofes naturais, terramotos, cheias, furacões ainda temos as catástrofes provocadas pelo Homem, guerra, fome, terrorismo. É urgente parar com a exploração dos recursos da natureza de maneira excessiva. Vivemos numa cultura de descarte, não só de bens, mas de pessoas.
Em 2017 sabíamos que mais de 80% da riqueza mundial estava concentrada em apenas 1% da população mundial. Em 2018 a riqueza dos mais ricos tinha aumentado 12%, mas a dos mais pobres tinha caído 11%, alargando o fosso entre ricos e pobres e assim tem continuado. Há uma desigualdade no equilíbrio económico. Essa desigualdade marginaliza, exclui. A Pandemia não afecta todos de igual forma. Estamos todos na mesma tempestade, mas não no mesmo barco. Os mais pobres são os que mais sofrem. Porque são descartados pela sociedade, porque são obrigados a viver dos restos dos outros e ainda têm de sofrer, injustamente, as consequências da exploração do meio ambiente.
É urgente terminar com as assimetrias sociais, a violação de direitos humanos a corrupção global, a pobreza, as alterações climáticas.
É urgente acabar com economia de exclusão de desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Essa economia destrói, exclui, mata. Ter o suficiente para comer e beber, uma casa e trabalho estável, são direitos humanos básicos a que todos deveriam ter acesso e que muitos de nós tomamos como garantido. Devemos abandonar atitudes que são tóxicas a nível individual e social como a rivalidade, evitar círculos fechados, o consumismo desenfreado que muitas das vezes leva ao acúmulo de bens materiais, não por necessidade, mas para preencher um vazio existencial e transmitir segurança. Fugir à corrupção, à competitividade de ser escravo do dinheiro.
A Pandemia veio expor as nossas fragilidades e demonstrar o quanto efémero é a nossa condição humana
A Pandemia veio expor as nossas fragilidades e demonstrar o quanto efémero é a nossa condição humana e como a Natureza continua a exercer a sua hegemonia, independentemente da vontade do Homem. Não somos os donos de tudo e muito menos conseguimos controlar a natureza. É emergente mudar o paradigma. Demonstrou que a Ciência deve ser ouvida. A Ciência está ao Serviço da humanidade. É necessário combater a ignorância e a desinformação. É necessário ter a consciência de que a própria vida é dinâmica e mutável. Compreender que as medidas que foram adoptadas, eram, e continuam a ser, necessárias para evitar que as consequências fossem muito mais trágicas.
É absolutamente fundamental, necessária e urgente uma transformação completa de atitudes e consciências. Atitudes que nos elevem como seres humanos que somos, atitudes que nos aproximem, de construção de fraternidade e que contribuam para o bem comum. É necessário termos mais responsabilidade afectiva.
O ano de 2020 ficará como um importante marco na História. A pandemia unificou o mundo num único acontecimento que marcará para sempre as futuras gerações. Que seja um marco de MUDANÇA. Que se torne na mudança que queremos ver na nossa realidade quotidiana.
As diferenças entre nós são impulsionadoras da mudança. É a resolução da tensão que é criada pelas diferenças que faz a humanidade avançar. As diferenças assustam-nos porque nos fazem crescer. O mundo avança com a reciprocidade e com a complementaridade. É urgente terminar com o racismo, com a xenofobia. Devemos construir pontes, mas construí-las de forma inteligente, através do diálogo e da integração.
Nenhum de nós está isolado e é autónomo e independente dos outros. Só podemos construir o futuro juntos, sem excluirmos ninguém. Já dizia John Lennon e se conseguíssemos “imaginar uma irmandade dos Homens. Imaginar todas as pessoas partilharem o mundo e viver como Um Só.”. Como seria maravilhoso que o crescimento da inovação tecnológica e cientifica também nos trouxesse mais equidade e mais inclusão social. Quando trabalhamos em equipa, fazemos tudo muito melhor do que conseguimos fazer individualmente. É a nossa diversidade que nos torna mais fortes. É indubitável que o individualismo e o egoísmo crescente, que se tem verificado no decorrer dos últimos anos, conduz-nos ao fracasso enquanto sociedade.
Somos testemunhas do esforço mundial e empenho de todas as nações na resolução de uma ameaça ao bem comum. A Pandemia mostrou-nos que quando queremos, unidos conseguimos. Superamos as diferenças.
Somente uma sociedade que assenta nos valores da solidariedade fraterna, na generosidade verdadeira, no respeito mútuo, é capaz de prosperar e progredir. Cada um de nós deve assumir as suas responsabilidades individuais enquanto pertencentes a uma colectividade, tanto na protecção dos mais frágeis como dos mais desfavorecidos. Só assim conseguiremos ultrapassar a cultura do desperdício e do descarte. Ninguém pode dizer “não tenho nada a ver com isso”. Todos temos.
Temos tanto para fazer e temos de o fazer juntos. Sejamos resilientes.
Procuremos viver mais e mais intensamente, ser mais saudáveis e viver em harmonia com os outros e com a natureza. Apreciar a vida.
Que prevaleça o sentimento de união. Que ponhamos em prática a regra de ouro: “Trata os outros como gostarias de ser tratado”.
Que cada um de nós saiba ser luz na escuridão dos conflitos que atravessamos.
Que saibamos ser genuínos nas palavras, nas acções e nos gestos. Conscientes que um simples sorriso, feito de livre vontade, ou uma palavra terna, transforma a vida do outro e enriquece a nossa.
Que aprendamos a perdoar as nossas falhas.
Que continuemos a dar o nosso melhor.
Que sejamos felizes e gratos com o que temos.
Que saibamos AMAR-nos a nós próprios, a nossa família, os amigos e aqueles que se cruzam no nosso caminho.
As respostas têm de ser encontradas através da Ciência. A vacina trouxe-nos o ânimo para perseverar, com esforço e coragem. Simboliza a união fraterna, o triunfo da ciência e da humanidade, mas sobretudo a Esperança, que continuará a ser a luz que nos guia nas adversidades e nos tempos mais lúgubres.
Citando o Papa Francisco: “A esperança é a virtude de um coração que não se fecha em si próprio, que não vive no passado, que não só sobrevive ao presente como também é capaz de ver o amanhã.”
O tempo voa, quer queiramos ou não.
Embora a vacina traga esperança, a batalha não terminou. A luta continua. As “tropas” estão exaustas. Não esqueçamos que todos os médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde são primeiramente Humanos. Não são máquinas. São homens e mulheres com desejos e receios que são comuns a todos. Pessoas que têm receio de perder os seus entes queridos. Que não querem viver com o peso de poderem ter transmitido a doença a um familiar. E com o mesmo desejo de poderem abraçar os seus.
Não baixemos a guarda. Lavar as mãos com frequência, usar máscara, manter o distanciamento, evitar ajuntamentos. Cabe a cada um de nós contribuir para minimizar as consequências da Pandemia. Reitero a necessidade de solidariedade entre todos.
Desejo a todos um próspero ano novo, com desejo e esperança na construção de um futuro melhor…
Ana Castro Neves
É com um enorme prazer que leio este profundo texto da Ana, portossantense, aluna brilhante, minha aluna há vinte anos. Texto cheio de verdade e de um repto para que as esperanças por um ano novo não seja apenas mais um lugar comum de cumprimentos em janeiro…
Boa tarde, Luís Timóteo!
Grato pelo comentário. Tomarei a liberdade de o partilhar com a Ana. Penso que vai gostar.
Bom Ano. Muita Saúde e Paz.
CS