A Amizade – Encontro com Deus através de um amigo

Dedicatória ao Padre Nélio Tomás

“Entenderemos a vida e a sua riqueza quando percebermos que é mais feliz quem dá e quem se doa.”

Este é para mim um dia muito especial.

A missa do Parto é um marco do início da minha amizade com o P. Nélio Tomás. Conheci-o num jantar de Madeirenses, numa fase da minha vida onde estava mais afastada de Deus. Nesse jantar percebi que ele poderia estar doente, mas o seu receio dos resultados dos exames, comum a tantas outras pessoas, impediram-no de procurar ajuda médica.

Desafiou-me a ir à missa do parto. Apesar da minha curiosidade, nunca tinha ido a uma, por ser tão cedo…o frio da rua era pouco convidativo e o quentinho da cama faziam ter preguiça. Nesse jantar disse-lhe “Deus cuida de todos nós, mas também ilumina os médicos na sua missão de modo a poderem fazer o melhor pelos doentes, caso contrário não seríamos necessários. Se eu acordar e for à missa, promete-me que faz todos os exames que lhe recomendar e deixa que seja orientado”. Ele acedeu.

Nesse dia assumi o compromisso para com a vida de um dos seres mais extraordinários que tive o privilégio de conhecer.

Não podia faltar a esta missa. Assim foi. Surgiu assim uma relação de médico para doente e a fundação da amizade. Muitas foram as perguntas, longas as conversas… perante o diagnóstico e a incerteza dos dias que se iriam suceder disse-lhe “não sei como vai correr, mas prometo que estarei ao seu lado durante todo o caminho”.
Não sei se fui eu que o acompanhei ou ele a mim. Caminhámos juntos. Como diz D. Tolentino Mendonça “Um amigo, por definição, é alguém que caminha a nosso lado, mesmo se separado por milhares de quilómetros ou por dezenas de anos. O longe e a distância são completamente relativizados pela prática da amizade. Há sempre um instante em que os verdadeiros amigos se revelam como aqueles que estão dispostos a acompanhar-nos aconteça o que acontecer. A amizade é uma experiência que o próprio
Deus testemunha. O amigo é a certeza de que Deus não nos abandona. Há um provérbio que diz: «Viver sem amigos é morrer sem testemunhas.» Os amigos trazem à nossa vida uma espécie de atestação. Os amigos sabem o que é para nós o tempo. Eles testemunham que somos, que fizemos, que amamos, que perseguimos determinados sonhos e que fomos perseguidos por este ou aquele sofrimento. E fazem-no não com a superficialidade que
na maior parte das vezes é a das convenções, mas com a forma comprometida de quem acompanha”.
Durante estes últimos anos muitas foram as conversas e os convívios onde pude testemunhar a vida do Pe. Nélio. Tendo como modelo a vida de Jesus, através da sua simplicidade e humildade colocou a sua vida ao Serviço dos outros e de Deus.

A sua vida é um exemplo e testemunho da fé e da dedicação ao outro.

Praticou sempre a bondade e generosidade em todas as suas ações e palavras. Tinha sempre uma palavra de incentivo, de conforto para todos, e quando as palavras não lhe chegavam, simplesmente sorria… sorriso esse que fica guardado para sempre na nossa memória.
Foi um verdadeiro pescador de Homens. Como São Paulo, também ele evangelizava nos locais mais inusitados, anunciando, não impondo, mas propondo e chamando para junto de si a ovelha perdida, cuidando assim de todo o seu rebanho.
Costumava dizer: “Não há detalhe mais bonito do que a atenção”. De facto, vivemos num mundo em constante agitação, a uma velocidade frenética. Quando vivemos a um ritmo tão acelerado, perdemos os nossos gestos mais humanos. Perdemos a capacidade de escutar os outros, a capacidade de ver os outros com um olhar humano, terno, misericordioso. Olhar as pessoas nos olhos. Ser verdadeiro. Torna-se assim imprescindível e imperioso estarmos atentos aos outros e às suas necessidades.
À semelhança do que aconteceu com São Martinho ou da parábola que Jesus nos conta do Levita, Deus visita-nos através do que nos é próximo. Fala-nos através de pessoas como o Padre Nélio, através das suas palavras e sobretudo através das suas vidas. É um apelo muitas vezes misterioso e que nos salva de diversas formas, por ser coerente por simplesmente nos querer o bem.
A amizade é um dom de Deus para nós, milagre da vida, é um verdadeiro tesouro. Jesus apresenta-se como amigo “Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso, eu vos tenho chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer” (João 15:15)
Disse-me o Pe. Nélio: “As amizades são alguns dos maiores tesouros que temos nas nossas vidas. Elas estão sempre ao nosso lado e nos mostram lados da vida que não conseguimos enxergar sozinhos. Nos consolam quando nos decepcionamos e nos mimam, mas também abrem nossos olhos e nos falam as verdades que ninguém mais está disposto. Amizades nos motivam todos os dias a sermos o nosso melhor.”.

O outro sempre foi a sua prioridade, sendo notório o seu espírito solidário e missionário no trabalho desenvolvido nesta comunidade e por todos os sítios por onde passou.
Ambos escolhemos uma vida de Serviço, colocar a nossa vida ao Serviço do outro com o melhor que sabemos, onde prevalecem as relações humanas.
Tenho a mais bela, mais nobre, mas também mais difícil das profissões. Como médica é minha preocupação e dever proteger e salvaguardar o humanismo, a relação humana e a sua fragilidade, através da humildade, da empatia, da solidariedade, da compreensão, da partilha da dor e dos medos, partilha da felicidade e a compaixão, que muitas vezes ultrapassam as palavras. É também minha a missão de servir e cuidar das pessoas e dos
doentes, entendê-los, respeitá-los e valorizá-los em todas as suas dimensões sempre com a máxima dignidade pela vida humana.
Das nossas conversas disse-me “Por isso pode acontecer não fazermos grandes coisas, mas podemos fazer GRANDE coisas com e em amor. Por isso amiga, o Serviço é uma atitude de vida deixe-se que haja oportunidades para a aplicação em todos os momentos da nossa vida pessoal e profissional. Por isso tu dás com alegria e aceitas com gratidão,
mas age sempre com determinação e vontade. Aceitas com gratidão e gosto o trabalho que realizas.

Façamos tudo valer a pena. A vida é tão imensa e ao mesmo tempo tão pequena.

Ele de facto fez extraordinariamente bem as coisas ordinárias, incentivando e iluminando a vida de todos aqueles que com ele se cruzaram, procurando sempre e em todos os momentos estabelecer e fortalecer os laços com os outros, ajudar de todas as formas, contribuir para a harmonia entre todos e entre nós e o Mundo.
Olhava-me fixamente, e de forma genuína recordava-me como devemos ser gratos.
Dava-me sempre palavras de alento e de confiança, encorajando-me e impelindo-me na minha missão, procurando sempre motivar-me a acreditar que não estamos sós: “Há dias em que saímos das sessões de alma cheia e coração a bater. Há pessoas sol, cujo brilho nos fica tatuado na pele. Estamos gratos por poder tocar a vida destas pessoas e nelas permanecer. Parece que às vezes caminhamos sozinhos, mas sabemos que nunca
somos abandonados.”
Entenderemos a vida e a sua riqueza quando percebermos que é mais feliz quem dá e quem se doa. É mais rico aquele que se apercebe que “Os rios não bebem sua própria água, as árvores não comem seus próprios frutos. o sol não brilha para si mesmo e as flores não espalham fragrância para si. Viver para os outros é uma regra da natureza.“ (Papa Francisco)
Todos somos chamados a cumprir o verdadeiro mandamento que Jesus nos deixou “Não me escolhestes vós a Mim, mas Eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, a fim de que tudo quanto em Meu Nome pedirdes ao Pai, Ele vos conceda. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros.” (João 15:13-17)
Como me disse o próprio “A vida passa e ficam as sementes. Bem-aventurados os que semeiam o bem. Tudo aquilo que realmente importa na vida não tem preço. Tem valor. “Bem-haja P. Nélio, pelas sementes que semeou ao longo da vida. Que germinem e deem fruto.
A sua passagem foi breve, mas intensa e carregada de significado. Há quem diga que as pessoas vivem até serem lembradas. Jamais será esquecido. Os santos não se esquecem.
Ser santo significa viver segundo a Palavra do Senhor, colocá-la em prática “não amemos com as palavras nem com a boca, mas com factos e com verdade” (1 Jo 3:18).
Nos meus momentos de revolta para com a vida, por presenciar e vivenciar impotente o sofrimento dos bons, daqueles que julgamos não serem merecedores desse sofrimento, quando me questionava “que Deus é este que permite que isto aconteça?”, Dizia-me ele: “o sofrimento faz parte do nosso crescimento. Jesus também sofreu. Sofreu por nós. Ele deu a sua vida por nós.”
É um verdadeiro exemplo de aceitação do sofrimento e superação. Um exemplo de perseverança, nunca se deixando abater pelo desânimo, mas antes vivendo os momentos na sua plenitude. Aproveitando o momento presente.
Perante o prognóstico esforcei-me por proporcionar momentos entre amigos e que fossem o mais memoráveis possível. Lembro-me de me perguntar: “Vou fazer parapente. Posso? Achas que há problema? E respondi “Desde que seja seguro, não pode, DEVE fazer, se isso é o que o faz feliz”. Não só ficou feliz como nos encantou com o vídeo que fez e partilhou.
Sempre de sorriso no rosto, o seu entusiamo pela vida era contagiante. Foi sempre esta a sua postura até ao fim… a gratidão pelo dom da Vida.
Tive o privilégio de poder cumprir com a promessa que lhe fiz.
A verdadeira missão do médico pode ser sintetizada na frase, “curar algumas vezes, aliviar frequentemente, confortar/consolar sempre”. E nesta frase há um misto de relação médico-doente e de amizade que se confunde. Sinto que ele é que me confortou, dizendo sempre “Eu estou bem!”
Fui testemunha da sua fé inabalável, despedi-me dele por “tu”, e foi a primeira vez que o tratei assim. Para mim ali não estava o Sr. Padre Nélio, estava O MEU AMIGO.
Porventura existirão poucas coisas tão difíceis na vida como a dor e o sentimento de impotência perante a inevitabilidade da morte. É preciso coragem para simplesmente se estar. Não se aprende nem se é ensinado a conviver com este momento.

Somos confrontados com a fragilidade humana na sua forma mais pura.

O desejo de apaziguar o sofrimento do outro e o nosso próprio é apenas minorado pela presença, pelo respeito recíproco, pelo silêncio, pela serenidade do olhar, pela necessidade da “mão amiga que se torna segredo vital e quase magia nos estádios terminais” (P. Vasco Pinto Magalhães).
Guardo as suas últimas palavras: “os amigos são a esperança…o futuro… Os amigos ficam para sempre! Há momentos que ficam para sempre…
É preciso acreditar sempre. “ACREDITA! CONFIA!”.
Com estas últimas palavras transformou aquele instante no limiar da morte, onde só os grandiosos atingem a liberdade e reconhecem que é no encontro com o outro que existe um “eu”. É pela entrega e na comunhão com o outro que se encontra a si mesmo, que se transcende e se chega ao Pai.
Foi o testemunhar presencialmente esta sua certeza que deu vida às palavras de S. João que para mim passaram a fazer sentido: “Nós sabemos que passámos da morte para a vida” (1 Jo 3:14).
Percebi que para o cristão a nossa existência é um processo biológico para a morte, mas um caminho de conversão ao Amor Divino, ao amor fraterno, que se atinge através da qualidade das relações que estabelecemos com os outros.
“Eu sou o caminho, a verdade e a VIDA, ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6). Eu sou “O princípio e o fim.” (Apocalipse 22:13).
Porque “Deus é Amor”. Esta frase encerra o mistério. O Amor é a vida e quem encontrou o Amor encontrou a Vida.
Aqueles que amamos não nos deixam, vivem connosco, estão sempre presentes e eternizados no nosso coração.
Com a certeza de que estás a olhar por mim e por todos, que estás com os teus e com os meus. Porque a saudade pode ser inexorável, inelutável e repentina, mas deste-me a certeza de que nos iremos reencontrar brevemente.
Obrigada meu amigo, pela caminhada, por teres sido luz na escuridão!

Obrigada pelo privilégio da tua amizade!


Gostaria de agradecer ao Sr. Padre Joaquim Costa e a toda a comunidade por manterem esta missa, a qual ele estava já a organizar com a alegria e entusiamos que lhe são característicos. Missa esta tão importante para mim, para ele e para todos os Madeirenses.
Obrigada por honrarem a sua amizade, o seu espírito solidário e celebrar a graça que nos foi dada de poder conviver com um ser humano especial, um ser de luz que marcou a vida de muitos de nós.
Que a graça do Nascimento do Menino faça brotar e germinar em nós a semente colocada pelo P. Nélio e que o levemos no nosso coração. Que a sua vida seja o farol que nos guia na nossa caminhada de encontro com os outros e com Deus.


Ana Castro Neves, médica e amiga do P. Nélio Tomás

Carlos Silva

Depois de uma viagem tranquila, mergulhado num mar de dúvidas, aportei a 2 de setembro de 1999, à Ilha do Porto Santo! À chegada, uma doce e quente onda de calor, qual afago de mulher amada, assaltou-me, até hoje! Do sucedido de então, até aos dias de hoje, guardo-o na memória; os sucessos, de hoje em diante, aqui ficam, para memória futura, da minha passagem pela Ilha!

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